Cidade
Da minha janela vejo uma história aos quadradinhos, nas traseiras dos prédios que ficam voltados para o meu:
Um casal de homossexuais que tem um frigorífico amarelo;
Uma mulher solitária que passa o tempo a espreitar pelas cortinas;
A casa do rés-do-chão, onde cães e gatos coabitam, indiferentes uns aos outros;
A roupa do rebento do casal jovem a crescer no estendal;
A palmeira que já chega à varanda do segundo andar;
A adolescente rebelde que fuma às escondidas;
As luzes de vários tons que acendem a noite;
Os tapetes estendidos nas manhãs de sábado…
Os meus olhos de criança provinciana, outrora cheios de sol e de campos a perder de vista, de pássaros e de estrelas, enchem-se agora daqueles rituais, daquela paisagem urbana, afundada no meio do betão, onde as pessoas se amontoam por cima umas das outras e assinalam a sua presença a estender e a apanhar roupa, a abrir e fechar janelas…
Os meus olhos pousam agora naqueles retalhos de existências atarefadas, quase esquecidos da cara redonda da lua…
Fecho a janela e recolho-me, cúmplice.
Envelheço também.